Abrindo o livro

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Todos nós temos histórias a serem contadas.
Certas pessoas precisam desesperadamente ligar para a melhor amiga e contar como foi o encontro com aquele cara incrível que acabara de conhecer, detalhe por detalhe - esse tema pode levar horas, talvez mais tempo do que se a amiga visse em tempo real - com direito a flashbacks e cenas em camera lenta, sendo muito importante descrever cada sorriso e posição exata do ângulo da boca e dos olhos... Outras contam aos filhos, ou netos, sobre os heróis da família, alguns usam a imaginação criando contos maravilhosos que nos fazem sonhar... Todos nós guardamos algo para ser dividido.
Porém existem aqueles que não conseguem contar. Não alcançam um ouvido aberto às suas palavras, um rosto amigo para terminar uma frase e guardam consigo os sons que gritam sem soltar ruídos, causando-lhes dor, sons que parecem tão grandes para a capacidade de seus corações, um livro pesado colocado bem sobre seus peitos, impedindo-lhes de respirar, apenas implorando para ser aberto. Se alguém os percebesse para olhá-los nos olhos poderia ver o grito, um grito de socorro...
Não sei porque lembrei-me disso depois de tantos anos, mas esse fato tão simples com certeza me marcou, me ensinou.
Era um dia comum, num ônibus comum, com os mesmos rostos que via todos os dias na volta da escola. Apenas um lugar vazio, a pesar de haverem duas ou três pessoas de pé.
Pensei em sentar, mas hesitei. - Por que esse lugar não fora ocupado?
No acento ao lado, um homem mal vestido, de barba mal feita, com pele mal tratada, rosto cansado, sendo difícil distinguir a idade, ele poderia ter trinta e tantos ou cinquenta, mas não fedia, apenas mal tratado. Enquanto passei um segundo pensando se deveria sentar-me ali, ele dirigiu-se a mim:
- Pode sentar, não mordo... - Seguido de um sorrisinho que escondia o tédio de passar por isso repetidas vezes.
- Obrigada. - Sorri de leve, sem graça por ter transparecido minha dúvida.
O ônibus andava vagarosamente, com um zumbido constante, o mesmo balanço de todos os dias, nada memorável.
- Você é bonita. - Disse ele, para a minha surpresa.
Meus instintos de menina de classe média me alertaram no mesmo instante, já pensando que não poderia vir nada bom de alguém mal vestido num ônibus depois de um comentário desses e logo quis me levantar. Não deixaria aquele velho me molestar com palavras impróprias!
Mas antes mesmo que eu me levantasse, notando minha expressão de ultraje, ele continuou:
- Desculpe-me, é que você se parece muito com a minha filha...- Seus olhos delatavam certa tristeza ao falar na filha e não pude deixar de ver que havia ali certa ternura também.
Continuei sentada, ainda fechada no meu mundo, contra aquele estranho mal vestido, mas não tive coragem de levantar, não queria ser rude com alguém que parecia sincero e acabara de me fazer um elogio.
- Sabe, faz muitos anos que não vejo minha filha... Ela era assim como você, delicada, de cabelo escuro e comprido, tinha até um sorriso como o seu. Eu adorava quando ela sorria...- ele sorriu apertando os olhos enrugados, um sorriso triste, mais de saudade e arrependimento que de felicidade.
Sorri sem graça para ele e fiquei ali ouvindo sua história, que ele começara a cuspir para fora, sem parar. A história de uma vida cheia de sofrimentos e escolhas erradas, perdas e uma carga enorme de arrependimento, com a qual ele tinha que lidar sozinho. Mas meus ouvidos finalmente estavam ali e ele aproveitava contando fluentemente os acontecimentos, como se em anos nunca tivesse conseguido contar a ninguém, um livro aberto depois de anos caído atrás da estante.
Alguns rapazes no ônibus faziam piada da minha disposição para ouví-lo.
- Bom papo hein tiozinho! - Riam e debochavam desse fato tão bizarro que é ouvir um estranho, um estranho mal vestido. Por que alguém ouviria aquela pessoa? Sua alma talvez se confundisse com a sujeira de sua roupa. Seu passado seria tão vazio quanto seus bolsos. Para eles com certeza não teria a opção de existir conteúdo em suas frases.
Ele fingia não ouvir, ou talvez realmente já ouvira tantas vezes comentários idesejáveis que lhe passava despercebido. Eu corei aos primeiros comentários, como se eu estivesse fazendo algo errado, mais uma vez pensei em levantar, mas também percebi que eu seria como os rapazes do ônibus se fizesse isso. Decidi ouví-lo, fazendo minha boa-ação do dia e, depois de tomada a decisão de abrir meus ouvidos, comecei a me importar com o que ele contava, algumas vezes comentei algo, ou fiz sinal afirmativo para lhe dizer que entendia sua dor, e realmente entendia até certo ponto. Sua história era triste e cheia de emoção. E ele contou e contou o quanto pôde. Quando cheguei ao meu destino, desejando de coração "Boa sorte", corri para casa no ímpeto de escrevê-la. Segui direto para o meu quarto, peguei uma folha em branco e uma caneta e fiquei olhando aquele papel...
Eu não me lembrava da ordem dos fatos, não conseguia por uma frase sequer no papel em branco. O que escreveria eu, com meus dezesseis anos de idade, nenhum problema sério durante toda minha vida de filha mimada e bem cuidada e nenhuma noção sobre o que ele falava?
Então eu percebi, não foi sua história que mais me emocionou, eu fiquei admirada com a leveza dos seus sentimentos, cada vez mais leve por poder compartilhar, página por página tirada de seu peito, pelo menos durante algum tempo, naquele dia, ele estaria mais leve, mais feliz. Lembrei-me de suas emoções, de sua gratidão pela minha aparência, que lhe trazia boas lembramças de um tempo mais feliz e principalmente por tê-lo ouvido.
Isso aconteceu há uns quinze anos, mais ou menos e ainda sinto-me feliz por ter tido a coragem de ouvir o que um estranho desarrumado tinha a dizer. Eu esperava fazer uma boa-ação, mas na verdade foi ele que me ajudou a entender melhor o mundo. Com aquela cabeça de adolecente, onde a aparência muitas vezes diz mais que mil palavras, eu descobri o poder de ouvir algumas palavras.
Eu gostaria muito de lembrar-me do que ele me contou e escrever para que mais pessoas pudessem ler seu livro pesado, mas me ocorreu que sua verdadeira história resumia-se naquele rosto cansado, que se transformava, de alguém que se libertou do peso incrível do livro sufocando seu peito.
É impressionante o que a atenção, mesmo sem palavras, pode fazer por outras pessoas, seja um amigo, ou um estranho no ônibus...
Falar nos faz feliz, ouvir nos faz heróis. Abra o livro, ouça, liberte!





COMENTÁRIOS AQUI!:


Anônimo Says: 
se mais nada, so esse texto todas as pessoas lessem e entendessem, seria um mundo melhor!
Atencao é o tesouro mais precioso realmente ... ignorar alguem é um dos piores castigos!
Amei, amei!
Te Amo, 
Zsombor
Carol Says: 
Obrigada amor, pelo comentário e por me dar tanta atençao sempre.
Te amo!
Ingrid Souza Says: 
Que lindo Carol, muito lindo mesmo! =)
Hoje logo cedo no mercadinho da esquina vi um senhorzinho que me lembrou meu avo, maltrado pelo tempo, um olhar triste, meio vago, enquanto eu escolhia umas maçãs ele dizia algo em hungaro que eu é claro, não entendi, então olheio balancei a cabeça com cara de "nao entendo", ele meio que sorriu, eu abri um sorriso largo ja com os olhos boaindo em lagrimas de saudade do meu velhinho que se for faz tempo, ele então sorriu de verdade e afagou meus cabelos como se eu fosse uma menininha, o afago daquele senhorzinho encheu meu coração e acho que o dele tb. =)

Beijocas minha linda, tenha um bom sabado!
Carol Says: 
É, Ingrid, com esses pequenos gestos as pessoas podem ajudar mais do que imaginam... como seria bom se todos sorrissem sinceramente, não é?
Beijinhos!
Ingrid Souza Says: 
Desde muito cedo aprendi com minha mãe que não importa a quantas anda a vida, um sorriso sempre é bem vindo, então mesmo de manhã quando to com aquele mau humor do cão nunca esqueço de dar bom dia e sorrir, e era assim, bom dia pro porteiro, pro outro porteiro, pros conhecidos da rua, pro motorista do onibus, cobrador e ai quando chegava no meu destino o humor já tava beeeemmm melhor.
Trago isso comigo e mesmo em terras estranhas eu sorrio e dou aquela balancadinha de cabeça hahah, gentileza gera gentileza. =)

Beijocas
Joice Says: 
Lindo o jeito que vc escreve e essa história é realmente emocionante :D Adorei! Grata por compartilhar! Beijos
Carol Says: 
Ingrid, esse é um ótimo costume. Eu tb costumo sorrir bastante, pra todo mundo, nem sei receber ninguém de cara fechada, acho que facilita a nossa vida e ajuda a dos outros...
Joice, que bom que vc gostou! Espero te ver mais vezes por aqui. :)
Beijinhos!
Anônimo Says: 
O texto "Abrindo o livro" mostra a sua grande sensibilidade, e o estilo está lindo. É incrível ver como você cresce a cada dia, a cada texto...emocionante!! Te amo, beijos Mamãe
Carol Says: 
Obrigada Mami!
Também acho que estou crescendo, mas não pela prática, porque sempre escrevi pra mim mesma e estava estagnada, acho que o que leva pra frente são todos esses comentários lindos (e eu até estava preparada para críticas) e o orgulho que eu vejo em vocês a cada final de semana que conversamos.Obrigada por tudo sempre!
Beijos!
IVONETE AIRES BALDO Says: 
QUE LINDO TEXTO... SABER OUVIR AS PESSOAS, PRINCIPALMENTE ÂQUELAS QUE NECESSITAM DE UM OMBRO AMIGO É UMA FORMA REAL DE AJUDAR AS PESSOAS, SEJAM ELAS PROXIMAS OU ATÉ ESTRANHAS... QUANDO VC PERMANECEU AO LADO DAQUELE ESTRANHO E OUVIU SEU LAMENTO, TRANSFORMOU SEU DIA EM GLÓRIA... E MOSTROU SEU AMOR AO PROXIMO, MESMO SENDO ELE UM ESTRANHO..
BJS IVO
Carol Says: 
É Ivo, eu me orgulho de ter ficado e ainda lembro daquele dia como uma coisa boa que aconteceu.
Estou muito feliz por ver sempre seu comentário aqui Ivo, isso me ajuda muito!
Um super beijo!
Juliana Says: 
Nossa Cá, me arrepiei lendo esse texro... e me senti com um peso na consciência, pois como você me conhece, não tenho paciência de ouvir estranhos... vou tentar melhorar!
Achei muito lindo e tocante o texto, e como outros textos seus, me deu um "emburrão", uma força.... uma injeção de ânimo, e um exemplo real que pequenas coisas fazem o mundo melhor!
Parabéns querida!
Adorei!
Mil beijossssssssss
Carol Says: 
Não tem que ficar com peso na consciência querida... ahahah Você tem seus meios de fazer um mundo melhor e eu sei como você faz o MEU mundo melhor. Mas fico feliz em saber que meus textos inspiram para que as pessoas possam fazer AINDA melhor...
Obrigada!
Beijos!
rosana Says: 
Os cariocas sabem disso, nunca escutei tantas historias como no RJ no comeco achava absurdo ,como alguem podia me contar a vida ou assuntos intimos sem bem me conhecer , mas dentro de tudo isso conheci muitas historias interessantes .
Carol Says: 
Que legal, em SP não é tão comum, por isso estranhei esse homem tb no começo, mas é uma coisa muito boa essa mania de ouvir. Se não me engano o cara não era paulista, taí o porquê de ele me contar tudo. :)
Obrigada por ter lido e pela informação, a gente sempre aprende algo, não é?
Beijinhos!
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