Meu avô Noé faz 99 anos nessa semana.
Ele sempre disse que chegaria aos 100. Faleceu da
maneira mais calma e bonita que se pode imaginar aos 88: no seu sítio, nos
braços da sua amada Encarnação, minha avó.
O vô Noé era uma pessoa de muita paz de
espírito, conseguia controlar seu corpo e sua mente de maneira extraordinária.
Foi ele quem escolheu a hora e a maneira de partir desse plano, eu tenho
certeza. No último final de semana junto a ele, na despedida, fui duas vezes
lhe dar um beijo, não sei por quê, e ele sorriu olhando-me nos olhos:
-Tchau fia! – foi diferente.
Meu avô havia trabalhado muitos anos como
comerciante, porém, quando perguntávamos sua profissão, ele preferia enumerar
as outras aventuras de sua vida: tropeiro, domador de cavalos, poeta e
violeiro. Qualidades interessantes eram o que não lhe faltava. Escreveu muitas
poesias, a maioria sobre seu amor –minha avó- e o resto era sobre a família e a
vida no campo, suas outras paixões. Das suas poesias nasceram dois livros e das
suas estórias, seus causos, um amigo escreveu outro.
O vô Noé jamais ficava doente. Batia no peito e
dizia que era forte, andava todos os dias e, para qualquer probleminha, tomava
o único remédio que ele acreditava funcionar: água com limão.
Ele era um herói, o homem forte da família,
tinha espingarda guardada no quarto, junto com o berrante, seus chicotes e toda
parafernália que um boiadeiro tem. Mas com os filhos e netos ele derretia. Podíamos
fazer dele gato e sapato: ficar penteando a careca dele até ficar vermelha; se
a pipoca queimava, ele comia mesmo assim, falando que estava uma delícia, só
porque éramos nós que havíamos preparado... Brigar com uma das crianças na
frente dele, nem pensar! Ele dizia:
-Deixa ele(a)... – com sua voz calma e
acolhedora.
Meu avô... Faz muita falta...
Depois que ele faleceu, tivemos muito medo de
perder minha avó junto, que o amor deles era inigualável e ela não acreditava
em nada sobre alma e vida após a morte. “Depois que morre, vira poeira”, era o
que ela achava. Acreditar no total desaparecimento do meu avô era muito triste.
Então, certa noite eu tive um sonho, alguns meses
depois de seu falecimento. E foi um sonho tão vivo, que carrego como lembrança
de um fato.
Qual a diferença entre uma lembrança vivida e
uma sonhada? Posso dizer que nesse sonho, eu vivia.
Nesse meu sonho, eu estava em frente à casa dos
meus avós, no Sítio Arco-Íris, o dia amanhecia e a imagem da casinha branca,
com a varanda e a calçada por volta, eram a perfeita replica daquele cenário
tão conhecido por mim. Até mesmo os rachamentos na calçada estavam em seus devidos
lugares. Havia um cheiro na atmosfera. Aquele cheiro de sítio, com o orvalho
nas folhas e a terra úmida. Barulho de pássaros e vento atiçando as árvores. E
de dentro da casa vinha um som familiar: era o rádio do meu avô ligado na AM,
como ele fazia todas as manhãs, dizendo o horário com o “pulo do gato”. Um som
que a vida toda eu só ouvi com a presença do meu avô. Em nenhuma outra
circunstância na vida eu ouvi o miado daquele gato, seguido da “hora certa”.
Comecei a chama-lo com toda força. Meu coração
disparado com a certeza de que ele estava por ali. Eu sabia que ele havia
falecido, mas também sabia que ele estava presente. Minha mão tremia e a
respiração estava agitada.
-Vô! Vooooô! – gritei.
E quando meus gritos cessaram, eu ouvi o seu
andar, com um leve arrastar de pés ao fazer o exercício diário, dando voltas e
voltas na calçada da casa.
Corri em direção ao som e o encontrei sorrindo,
de braços abertos para mim.
Ao chegar perto, ele segurou meus ombros e
disse com muita atenção:
-Fala pra todos que eu amo cada um de vocês. E
diga pra vó para não se preocupar, eu estou esperando e ela tem que acreditar
nisso. Fale para ela que eu a amo e estou esperando por ela.
Ele me abraçou, senti seu rosto com a barba
acabada de fazer, o cheiro de loção Bozzano misturada ao seu cheiro tão
familiar. Senti seu abraço, a textura de sua roupa quando o apertei. Fechei os
olhos, senti uma lágrima escorrer... E eu acordei... Acordei com a sensação
nítida de seu abraço, e a lágrima que escorria em meu rosto estava lá.
De todos os sonhos, aquele foi o mais real que
vivi, talvez muito mais real que certas coisas vividas enquanto acordada.
Por que conto isso hoje, depois de mais de 10 anos que sonhei? Porque, apesar de já
ter contado seu recado na época, o sonho continua vivo em mim como lembrança e
mais uma vez, hoje, eu gostaria de passar o seu recado. Não sou religiosa, mas
acredito que tenha sido ele. Quero acreditar.
Na época, ao contar para minha avó, ela, que
sempre foi descrente de tudo, sorriu numa convicção tão viva quanto a de uma
beata, na certeza de que aquele havia sido seu Noé. Ver seu rosto iluminado por
um instante novamente, concretizou a crença, tornara tudo irrevogavelmente real.
-Fia, - disse ela sorrindo - se ele quisesse me
dizer algo, é claro que falaria com você!
Certa noite eu vivi um sonho... Certos sonhos
são reais... Afinal, o que é real? Se a lembrança é tão viva, então por que não
considera-la como realidade?
Certa noite eu matei uma saudade e, como na
vida vivida, foi só daquela vez, mas foi real.
Eu vivo a vida sonhando, por que não sonhar
vivendo?
Hoje não estou triste ao pensar no meu avô,
porque ele é eterno: fez livros, plantou árvores e criou filhos que acreditam
na sua eternidade.
Te amo Vô Noé! Só falta mais um ano pra você
completar os 100!