Morar longe
do lugar em que crescemos, viver fora do país onde nascemos, implica em muitas
surpresas com a maneira que pensamos e usamos as lembranças. Para a
sobrevivência, é necessário que se enxergue o melhor em cada detalhe, é imprescindível
que o lado positivo seja tirado, nem que forçadamente, uma lasquinha...
Hoje,
trocando mensagens no grupo da família, um dos meus primos enviou uma nova
versão da música “The Sound of Silence”, que por sinal é muito boa, feita num
ritmo mais pesado, de rock (estilo que eu gosto) e interpretada por um cantor
de voz forte, que realmente faz arrepiar. Então, comentei que a versão ficou
ótima, mas adoro a original. Meu primo disse que ele acha que essa ficou melhor
e eu não consegui concordar. Perguntei-me o porquê do apego à versão original.
Cheguei à
conclusão de que a questão não é se o Paul Simon canta melhor ou não,
simplesmente essa música, não é apenas uma música, ela é parte da minha
memória. Tanta coisa ficou tão longe de mim, que passei a cultivar pedacinhos
do passado, mesmo sem querer, sons e cheiros que me transportam, não somente no
tempo, mas no espaço também. Como se o passado pertencesse a outro mundo. E essa
música é minha infância, essa música é, principalmente, minha mãe, quando
colocava pra tocar sua fita de Simon and Garfunkel e acompanhava da cozinha.
Essa música possui mais que o som que todos ouvem, ela tem o som da minha mãe
no cômodo ao lado e do meu irmão pulando a minha volta, tem cheiro de sopa de
ervilha na panela e a exata aparência da minha antiga casa, onde vivi minha
vida toda enquanto morava no Brasil. Como poderia qualquer cantor competir com
isso? Nunca nenhuma versão será melhor.
Percebi que
coleciono sons, cheiros e até gostos que me transportam. Passei a adorar
rúcula, verdura que eu não gostava enquanto morava no Brasil, porque tem um
gosto forte no meu passado. Hoje, como até paçoquinha - eu, que não gosto de
coisa muito doce - porque tem gosto de festa junina.
Não sei
dizer todos os itens da minha coleção, porque me pegam de surpresa; chegam de
repente, com uma lembrança prontinha, que nem sempre sei definir imediatamente,
mas o coração reconhece de primeira, apertando-se num canto e suspirando,
pedindo para que meu cérebro passe essa ou aquela cena, traga mais perto aquela
pessoa, me leve para um determinado lugar... e eu viajo na sensação familiar.
Cheiros, já
não são apenas cheiros, músicas não são sons, gostos não dependem apenas do meu
paladar: são memórias, são pequenas lembranças que nem eu sabia que guardava,
coisas do dia a dia, sem ligação com acontecimentos definidos, que se tornam
mais importantes que a própria história; são detalhes no cenário, que nem ao
menos aparecem no filme, mas que fazem diferença na realidade que trazem
consigo. Nada supera as peças da coleção de memórias. Não é para fazer sentido,
nem se pode dizer que é melhor por um motivo ou por outro, também não posso
explicar... Nunca vou conseguir explicar o cheiro da colônia Bozano, porque ela
era meu avô, barbeado toda manhã, quando chegávamos ao sítio e lhe dávamos um
beijo. Isso, nenhum perfume da Chanel pode proporcionar.
Gosto de
casa, cheiro de pai e mãe, sons de uma outra dimensão... Ainda bem que continuam me surpreendendo numa
breve viagem e, mesmo que por um segundo, tornam possível matar a saudade de
tudo o que está longe, de todos os que me marcaram de alguma forma, de quem já
não posso encontrar nem com uma viagem... Nesse breve momento, tempo e espaço
não existem, apenas aquela concreta memória.
Até hoje,
17 anos depois que deixei o Brasil, me surpreendo com as pequenas coisas que me
afetam e podem fazer do meu dia mais feliz ou mais triste, conforme eu
interpreto. A saudade é um sentimento estranho, nos faz rir e chorar, divide
opinião entre ser a vilã ou a heroína. Eu prefiro aceita-la de braços abertos e
viajar na minha infinita coleção de momentos.