A coleção

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

 
Morar longe do lugar em que crescemos, viver fora do país onde nascemos, implica em muitas surpresas com a maneira que pensamos e usamos as lembranças. Para a sobrevivência, é necessário que se enxergue o melhor em cada detalhe, é imprescindível que o lado positivo seja tirado, nem que forçadamente, uma lasquinha...

Hoje, trocando mensagens no grupo da família, um dos meus primos enviou uma nova versão da música “The Sound of Silence”, que por sinal é muito boa, feita num ritmo mais pesado, de rock (estilo que eu gosto) e interpretada por um cantor de voz forte, que realmente faz arrepiar. Então, comentei que a versão ficou ótima, mas adoro a original. Meu primo disse que ele acha que essa ficou melhor e eu não consegui concordar. Perguntei-me o porquê do apego à versão original.
Cheguei à conclusão de que a questão não é se o Paul Simon canta melhor ou não, simplesmente essa música, não é apenas uma música, ela é parte da minha memória. Tanta coisa ficou tão longe de mim, que passei a cultivar pedacinhos do passado, mesmo sem querer, sons e cheiros que me transportam, não somente no tempo, mas no espaço também. Como se o passado pertencesse a outro mundo. E essa música é minha infância, essa música é, principalmente, minha mãe, quando colocava pra tocar sua fita de Simon and Garfunkel e acompanhava da cozinha. Essa música possui mais que o som que todos ouvem, ela tem o som da minha mãe no cômodo ao lado e do meu irmão pulando a minha volta, tem cheiro de sopa de ervilha na panela e a exata aparência da minha antiga casa, onde vivi minha vida toda enquanto morava no Brasil. Como poderia qualquer cantor competir com isso? Nunca nenhuma versão será melhor.
Percebi que coleciono sons, cheiros e até gostos que me transportam. Passei a adorar rúcula, verdura que eu não gostava enquanto morava no Brasil, porque tem um gosto forte no meu passado. Hoje, como até paçoquinha - eu, que não gosto de coisa muito doce - porque tem gosto de festa junina.
Não sei dizer todos os itens da minha coleção, porque me pegam de surpresa; chegam de repente, com uma lembrança prontinha, que nem sempre sei definir imediatamente, mas o coração reconhece de primeira, apertando-se num canto e suspirando, pedindo para que meu cérebro passe essa ou aquela cena, traga mais perto aquela pessoa, me leve para um determinado lugar... e eu viajo na sensação familiar.
Cheiros, já não são apenas cheiros, músicas não são sons, gostos não dependem apenas do meu paladar: são memórias, são pequenas lembranças que nem eu sabia que guardava, coisas do dia a dia, sem ligação com acontecimentos definidos, que se tornam mais importantes que a própria história; são detalhes no cenário, que nem ao menos aparecem no filme, mas que fazem diferença na realidade que trazem consigo. Nada supera as peças da coleção de memórias. Não é para fazer sentido, nem se pode dizer que é melhor por um motivo ou por outro, também não posso explicar... Nunca vou conseguir explicar o cheiro da colônia Bozano, porque ela era meu avô, barbeado toda manhã, quando chegávamos ao sítio e lhe dávamos um beijo. Isso, nenhum perfume da Chanel pode proporcionar.
Gosto de casa, cheiro de pai e mãe, sons de uma outra dimensão...  Ainda bem que continuam me surpreendendo numa breve viagem e, mesmo que por um segundo, tornam possível matar a saudade de tudo o que está longe, de todos os que me marcaram de alguma forma, de quem já não posso encontrar nem com uma viagem... Nesse breve momento, tempo e espaço não existem, apenas aquela concreta memória.
Até hoje, 17 anos depois que deixei o Brasil, me surpreendo com as pequenas coisas que me afetam e podem fazer do meu dia mais feliz ou mais triste, conforme eu interpreto. A saudade é um sentimento estranho, nos faz rir e chorar, divide opinião entre ser a vilã ou a heroína. Eu prefiro aceita-la de braços abertos e viajar na minha infinita coleção de momentos.
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